#015 – Marielle Franco: será que estamos fazendo as perguntas certas?

Foi uma rajada de tiros que executou Marielle e Anderson na noite de quatorze de março de dois mil e dezoito! Anderson Gomes, o seu motorista, infelizmente estava no lugar errado, na hora errada, o alvo era a vereadora que havia sido eleita e iniciado o mandato em dois mil e dezessete. A sua atuação se destacava pela constante defesa dos direitos humanos, em especial das mulheres moradoras da periferia da Cidade Maravilhosa. Muitos não acreditam, mas ela também se atuava na assistência às famílias de policiais civis e militares mortos em serviço. Por ter sido assessora parlamentar de Marcelo Freixo, outro campo de atuação ao qual se dedicava era o combate à grilagem.

A grilagem é a prática de obtenção ilegal de títulos de imóveis através do uso da coerção ou de documentação falsa. O termo descende da antiga prática de colocar documentos dentro de gavetas infestadas com grilos para que em pouco tempo adquirissem aspecto envelhecido. Os bandidos, grileiros, geralmente reivindicavam a posse de terras devolutas ou de terceiros. As práticas atuais envolvem o registro de títulos de posse das terras em cartórios e em diversos órgãos federais. Outras mantém os resquícios de outrora, usando a ameaça e a violência física, com diferentes graus de crueldade. As investigações atuais indicam que os bandidos contra os quais Marielle estava lutando fazem parte desta última estirpe. A história recente do Brasil

Não é de hoje que grupos paramilitares, como as milícias, atuam de forma a coagir os cariocas. Na história recente do Brasil e especialmente durante o regime/ditadura militar (1964-1985) haviam grupos que se auto-intitulavam Esquadrões da Morte. Estes grupos eram muito ativos nos estados São Paulo, Rio de Janeiro, Alagoas e Espírito Santo. Eles se inseriam em regiões onde o Estado não estava presente (se era por incapacidade ou omissão é você quem escolhe acreditar em Papai Noel e Coelhinho da Páscoa ou não) através da promessa de promoverem a segurança local através da eliminação de criminosos e fações criminosas.

Seu apoio popular era construído através da centralização da criminalidade, porque se apresentavam como personalidades autoritárias, cuja força era sentida apenas por aqueles que violassem as leis de conduta por eles imposta. Além da venda de proteção policial à população e comerciantes, esses grupos controlavam a prostituição, o roubo de carros, a venda de drogas e de armas.

A forma como estes grupos adquiriram Poder – alcançavam seus interesses de maneira independente da vontade dos outros – pode ser compreendida a partir da junção dos três tipos de autoridade identificados por Weber.

  • Autoridade tradicional: é adquirida com base em padrões culturais transmitidos através das gerações. Nesta modalidade, as pessoas são controladas pelo status social do seus líderes, como por exemplo, os mais anciãos, pelos homens (no caso do patriarcado), pelas autoridades religiosas, etc. Nestes casos, a autoridade é exercida pelos indivíduos e não por leis e regras de conduta;
  • Autoridade carismática: surge pela crença de que determinados líderes possuem virtudes excepcionais e com isso controlam seus rebanhos por causa de uma devoção cega. Este tipo de autoridade é muito instável pois o líder precisa constantemente comprovar as suas qualidades e dar prova de suas virtudes. Quando isto não acontece pode surgir uma crise e corroer a autoridade deste líder e o sistema pode ser substituído por outro líder carismático, pela autoridade advinda da tradição ou pelo terceiro tipo de autoridade identificado por Weber;
  • Autoridade legal-racional, cuja fonte de poder se assenta no conjunto de leis e regulamentações aprovadas pelo poder público através de reflexões racionais. Para Weber este tipo de autoridade é típica da sociedade Capitalista, com suas modernas organizações burocráticas e sistemas democráticos de organização da vida em sociedade.

Nas periferias o controle da vida em sociedade é tradicionalmente feito pelo grupo com mais recursos bélicos, financeiros e políticos, que prometem proteger a sua comunidade de ameaças externas e internas. Internamente, as regras de conduta não são estabelecidas pelo poder do Estado democrático de direito, a racionalidade é e as penalidades são outras. Se Embora a violência seja um ponto central na construção da autoridade exercida pelos Esquadrões da Morte Weber nos mostra que existem ela não é a única fonte de sustentação do seu poder nas comunidades das periferias do Brasil.

A atuação dos Esquadrões da Morte era livre de represálias também porque gozavam de grande proximidade com o poder público, possuindo membros atuantes nas forças policiais, judiciais e políticas. “Esses grupos cresceram muito ao longo dos anos 1970 e, nos anos 1980, mudaram a forma de operar, com a entrada de civis. Finalmente, esses matadores começaram a projetar-se politicamente e eleger-se a partir dos anos 1990, chegando à forma de milícia no início dos anos 2000.” Não é de surpreender que conquistam e mantém o controle político de onde atuam executando lideranças políticas que se opunham aos interesses de seus comparsas.

“A omissão das autoridades políticas conduz seus representantes ao papel de conivência e, em alguns casos, até de autoria dos crimes de execução sumária.”

Após a redemocratização do país houve uma redução da visibilidade dos Esquadrões da Morte, mas suas práticas não sairam de moda. Isso é muito perceptível no caso do Rio de Janeiro, onde surgiram as milícias, que se apresentam como grupos capazes de oferecer a segurança aos moradores de comunidades carentes nas periferias, onde as ações do Estado não atua, e quando atua é na base da porrada, tiro e bomba.

As milícias garantem ter capacidade de tornar determinada mais segura porque dizem possuir facil acesso à armamentos e proximidade com as forças policiais. ‘Maix assim, ó: não izixte almoço grátis, não, mermão. Se tu quizé a nossa ajuda tu vai tê que me ajudá a ti ajudá, precisá dixcolá um faix mi rir aí. Sabe qualé!?‘.

Da mesma forma que os grupos de extermínio atuantes na segunda metade do século passado, as milícias passam ofertar proteção armada e a gerenciar as atividades ‘legais’ e ilegais na comunidade. Desde a cobrança do ‘gato de luz’, da ‘gatonet’, a comercialização do gás de cozinha, a autorização para abrir um bar, mercadinho, a organização das zonas de meretrício, do jogo do bicho, das casas de bingo e das ‘boca de fumo‘.

Na verdade, a verdade é que em grande parte dos casos é difícil distinguir quando uma comunidade é controlada pelo tráfico ou pela milícia. Parece que a linha de separação se encontra na proximidade com os setores de dentro das forças policiais, das instituições políticas e jurídicas que foram corrompidas por causa da lucratividade do tráfico de drogas, da comercialização de armas e da grilagem.

As milicias se apropriam de terras públicas ou privadas que estão sem uso. Após apropriadas estas terras são loteadas e vendidas, sobre elas são construídos conjuntos habitacionais cujos apartamentos são alugados de maneira ilegal. Tudo indica que a execução de Marielle foi motivada pela sua atuação parlamentar contra a grilagem de terras por parte das milicias na zona oeste do Rio.

Apesar da Delegacia de Homicídios do Rio ter perdido as gravações feitas pelas cameras no local e horário em que o carro no qual ela estava foi alvejado, um ex-policial militar e outro policial militar reformado (aposentado com pensão vitalícia) são apontados como os principais suspeitos de terem cometido o crime.

Elcio Vieira de Queiroz, PM que já foi expulso da coorporação por envolvimento com o trafico de drogas, é acusado de ter sido o motorista enquanto Ronnie Lessa é acusado de ter disparado os treze tiros usando uma submetralhadora automática MP5.


Os motivos para a expulsão de Elcio da PM dizem respeito à venda de informações sobre operações policiais, receptação de bens oriundos da guerra entre diferentes facções criminosas e prestação de serviços de segurança para casas de jogos de azar.

Ronnie Lessa, por sua vez, além de estar sendo apontado como responsável por deferir os treze tiros foi preso e responde pelo comercio ilegal de armas de fogo. Um verdadeiro arsenal foi encontrado na casa de um laranja, amigo de Lessa, que admitiu ser o proprietário dos componentes para a montagem 117 fuzis, além de miras e abafadores de ruído. “Apesar de nunca ter sido formalmente denunciado até o momento, já era conhecido por ter trabalhado servindo bicheiros e como matador de aluguel.” Inclusive, existem suspeitas de que Lessa tenha sido diretamente ligado aos Esquadrões da Morte, inclusive possuindo carteirinha de membro.


Para um primeiro momento, o crime parece ter sido solucionado, os autores dos disparos identificados e só faltaria transcorrer dos processos legais para as suas condenações, mas faltavam elementos que ligassem Élcio Queiroz e Ronnie Lessa diretamente à vereadora Marielle. Novas investigações ampliaram o leque de suspeitos de envolvimento no assassinato.

Em depoimento prestado em setembro de dois mil e dezenove o miliciando Orlando de Oliveira Araújo afirmou que o assassinato da vereadora Marielle já havia sido discutido, em dois mil e dezessete (dois anos antes). Naquela conspiração estavam, além do depoente, o subtenente da Policia Militar Antônio João Vieira Lazaro, que já havia trabalhado para o político Domingos Inácio Brazão (conselheiro do tribunal de contas do Rio de Janeiro afastado por suspeita de corrupção), Hélio Paulo Ferreira (conhecido pela alcunha de Senhor das Armas) e o Major da PM Ronald Paulo Alves Pereira.

O Major Ronald foi preso no início de 2019 por ser considerado um dos chefes do Escritório do Crime, o grupo de assassinos de aluguel ligados à uma poderosa milicia que atuava na zona oeste da capital carioca. Outro chefe do Escritório era o ex-Policial Militar – Capitão do Bope) Adriano Magalhães de Nóbrega. É nesse ponto que a trama começa a para o envolvimento da Família Real com as milícias do Rio de Janeiro.

Enquanto deputado estadual do Rio de Janeiro (2003 à 2019), o atual senador e filho do presidente de República Federativa do Brasil homenageou os dois chefes do Escritório do Crime, Adriano de Nobrega em 2003 e Ronald em 2004. Não bastasse as homenagens, que poderiam ser apenas uma prática comum do então deputado elogiar agentes de segurança pública, o seu gabinete na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) chegou a empregar a esposa e a mãe de Adriano.

De acordo com Flávio – o Zero Um – ambas foram contratadas por Fabrício Queiroz – o Motorista que se escafedeu. A ligação delas com Flavio foi descoberta em meio à investigação do então Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) por conta de operações financeiras atípicas por parte do Motorista, que é primo de David Copperfield.

“O órgão, que atua na prevenção e combate à lavagem de dinheiro, apontou ao Ministério Público diversas transações suspeitas feitas por ele, incluindo uma centena de saques em dinheiro e um cheque de R$ 24 mil depositado na conta da hoje primeira-dama da República, Michelle Bolsonaro. O presidente disse que o amigo estava pagando de volta um empréstimo.”

Adriano foi morto em uma operação policial na zona rural de Esplanada, na Bahia. Ele estava escondido numa propriedade de Gilsinho da Dedé, vereador da cidade filiado ao PSL, que em depoimento à polícia disse não saber que o miliciano estava escondido em sua propriedade. Existem versões conflitantes sobre as circunstâncias sob as quais ocorreu o confronto.

Por ser foragido da polícia desde o início de 2019 ele já havia escapado de, ao menos, uma operação cujo objetivo era sua prisão. Após escapar, ele ligou para o seu advogado por temer ser assassinado por queima de arquivo. O senador Flávio e o Presidente J. M. Bolsonaro culpam o governo da Bahia (PT) por execução sumária. A versão do governo baiano é de que a morte ocorreu devido a troca de tiros enquanto reagia à prisão.

“Segundo laudo do Departamento de Polícia Técnica da Bahia divulgado nesta quarta-feira, Adriano foi morto com dois tiros na região do tórax, disparados de frente, um de cima para baixo e outro de baixo para cima. Um deles atravessou o corpo do miliciano, e o outro ficou retido, tendo sido encaminhado para teste de balística. Os disparos causaram lesões no tórax, no pescoço e na clavícula e quebraram sete costelas. Adriano morreu de anemia aguda e politraumatismo ocasionado por um “instrumento de ação perfuro-contundente”, afirma o laudo.”

Retirado do filme ‘O poço’

É bem provável, é óbvio, que nunca saberemos se houve queima de arquivo ou se a morte de Adriano foi apenas o resultado de uma intensa troca de tiros.

Além da pergunta mais recorrente ‘Quem mandou matar Marielle?’ o caso levanta preocupações inquietantes. Quão enraizadas estão as milícias dentro da estrutura dos Governos Federal, Estaduais e Municipais? Se elas existem, qual o grau de coordenação e cooperação que existem entre as diferentes instâncias? Qual o grau de participação da iniciativa privada nestas relações? E, a mais importante de todas: onde foi que erramos?

Talvez esteja na hora de questionarmos não apenas quem mandou matar Marielle, mas também porque ela se tornou um alvo. Talvez a resposta para esta pergunta possa ser encontrada na vergonhosa desigualdade social, econômica e cultural persistente no Brasil. Desigualdade essa que produz dezenas de milhares de crianças sem acesso à educação, à saúde, à alimentação, à moradia digna, destinadas a trabalhar no subemprego. Desigualdade essa que produz a marginalidade e a violência estrutural. Desigualdade que tem cor, que escancara esse racismo que não foi abolido com a escravidão, que direta e indiretamente afeta todos e todas nós.

Não é porque as coisas sempre foram assim que elas precisam continuar sendo. Temos o péssimo hábito de não estudar nosso próprio passado e com isso continuamos repetindo erros abomináveis. Quantas vidas poderíamos ter poupado se tivéssemos um sistema econômico justo, um desenvolvimento sustentável e uma sociedade inclusiva?

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