Aviso aos mais apressados que a conclusão do texto é bem simples: um país que não permite e que persegue cientistas é um país autoritário, guiado por um líder, ou um partido, que exigem total reverência e lealdade ao seu projeto de governo, coibindo toda e qualquer forma de produção de conhecimento científico
A democracia liberal, o livre mercado e o justo equilíbrio entre os interesses do povo, das indústrias e do Estado são completamente incompatíveis com a ausência do conhecimento científico. Desafio quem quiser a me provar errado neste ponto. Qual país consegue oferecer boa qualidade de vida ao seu povo sem investir em educação, ciência e tecnologia?
Produzir conhecimentos empiricamente verificáveis e logicamente coerentes faz parte do conjunto de pilares que sustentam o modo como vivemos desde o advento da modernidade. Esses dois pontos de partida são independentes de a pesquisa ser orientada ao avanço do conhecimento básico, ao desenvolvimento tecnológico ou à inclusão socioeconômica.
A separação entre ciência básica, tecnológica e desenvolvimento socioeconômico é muito contestada. Esta é uma crítica com a qual eu concordo e já foi problematizada em outra postagem. Aqui ela será empregada apenas para reduzir a complexidade do tema sendo discutido.
Apesar da sua importância, desde o início da revolução científica até os dias atuais a ciência tem sido alvo de ataques constantes. Às vezes me pergunto se estamos retornando a um período pré-iluminista. Até mesmo os conhecimentos mais consolidados como o fato de a terra ser redonda e girar ao redor do sol são alvos de questionamentos revisionistas.

Numa tradução livre das frases no folder do cruzeiro até a beirada da terra está escrito: “A maior, mas audaz e melhor aventura até agora – Cruzeiro da terra plana 2020”
Tem gente que não sente vergonha por dar atestado de burrice e chega a afirmar que o sol é uma grande lâmpada pendurada no teto. Se vocês ficarem em silêncio por uns instantes até dá pra escutar o choro de Nicolau Copérnico, Johannes Kepler, Isaac Newton, Galileu Galilei e Giordano Bruno. Seria cômico se não fosse tão trágico.
O maior problema relacionado a essa querela, no entanto, está no papel desempenhado pela ciência sobre a organização da sociedade, as políticas públicas, o desenvolvimento de vacinas, e para a elaboração de orientações sobre como as pessoas devem se comportar para evitar o espalhamento de vírus, bactérias e demais doenças para as quais ainda não existe vacina ou tratamento.
Pior, quando surge uma solução, ou orientações com base em estudos científicos a população simplesmente se revolta contra a ciência. Um caso que marcou a história da saúde pública no Brasil foi o da revolta da vacina, em 1904 no Rio de Janeiro.
No início do século passado, o médico Oswaldo Cruz iniciou uma série de medidas para a redução dos problemas de saúde pública encontrados na então Capital nacional. Visando erradicar a Peste Bubônica (provável causadora da peste negra que assolou a Eurásia na Idade Média), a Febre Amarela e a Varíola o governo declarou que a vacinação era obrigatória para toda a população. A população ficou indignada e se rebelou. Não aceitava tomar a vacina.
Imaginem o absurdo: para matricular os filhos na escola, para viajar, casar e até se hospedar em alguns hotéis era preciso apresentar comprovante de vacinação. Mais de um século depois a situação não melhorou, só piorou.
Desde 2016 Sociedade Brasileira de Imunizações tem alertado que doenças consideradas erradicadas como o Sarampo, a Poliomielite, a Rubéola e a Difteria podem retornar ao país devido a baixa cobertura vacinal. Ou seja, as pessoas não estão se vacinando.
Parece que o movimento antivacina, junto com o anticientífico tomaram o país inteiro. Agora, durante a PANDEMIA do COVID19 esta situação se tornou muito mais preocupante, principalmente por causa da maneira como o governo federal – não – tem tratado a doença com a seriedade necessária.
Os efeitos desta falta de responsabilidade pública tem consequências negativas. Por exemplo, no dia 20/04/2020 haviam falecido 2584 pessoas, um mês depois, no dia 20/05/2020 este número subiu para 18859. Ou seja, o número de óbitos se multiplicou 7,29 vezes. Apenas no dia 20/04 ocorreram 116 óbitos, enquanto no dia 20/05/2020 foram 888 pessoas que perderam a vida. Tanto o número total de óbitos quanto o número diário tem se multiplicado assustadoramente.
Se esses números não te deixam preocupado, não te assustam ou não te deixam com um profundo sentimento de pesar você já morreu por dentro, perdeu todo e qualquer resquício de humanidade que lhe restava, não é sequer digno do ar que respira.
Muitas dessas vidas poderiam ter sido poupadas se o país seguisse as orientações da Organização Mundial da Saúde. São orientações bem básicas e podem ser resumidas no uso de máscaras, manutenção de distância mínima de um metro entre as pessoas, em evitar lugares fechados ou aglomerações, lavar as mãos e evitar o contato físico.
O belo exemplo dado pelo mandatário do país é justamente o oposto destas orientações e a insistência na promoção de um medicamento cuja eficácia para o tratamento do COVID19 nunca foi cientificamente comprovado.
Estranhamente, este medicamento é produzido pelo exército Brasileiro e sua produção era de duzentos e cinquenta mil comprimidos a cada dois anos, atualmente a produção é de quinhentos mil por semana. Só agora, no dia 20/05/2020 que o governo admitiu que não existe eficácia comprovada, mas que o medicamento pode continuar sendo administrado desde que o paciente assine termos de compromisso reconhecendo e assumindo a responsabilidade por possíveis graves efeitos colaterais.
Pra quem não tem muita vocação para rato de laboratório aí vão umas fotos orientando como usar as máscaras de proteção da maneira correta.

Na verdade, a Organização Mundial da Saúde acabou de suspender os testes para o tratamento da COVID19 por questões de segurança. Ou seja, assim como a pílula do câncer – também defendida pelo então Deputado Jair – a cloroquina piora as condições de saúde da pessoa em tratamento.
Talvez o ministro astronauta tenha lhe dado umas aulas e o presidente nem tenha tantas dúvidas no que diz respeito à ‘cuestão’ do formato da terra. Mesmo assim, já demitiu dois Ministros da saúde porque eles estavam usando o conhecimento científico para discordar dele. Esse comportamento, um tanto quanto pitoresco para o século XXI, reforça um duelo muito peculiar, que tem tomado conta da vida das brasileiras e dos brasileiros.
No canto esquerdo do ringue, temos os ‘Petralhas&Comunistas’ que acreditam na ciência e defendem a total adoção das recomendações da OMS. Do lado direito, temos os ‘Bolsominions&Coxinhas’, que não confiam na ciência, mas confiam no seu minto até debaixo d’água.
Inclusive, acham super de boa o seu ex-motorista lhe pedir quarenta mil reais emprestado quando tinha cento e trinta e três mil reais em dinheiro vivo (in cash, como dizem os gringos) para pagar uma conta hospitalar e logo depois desaparecer. Aonde está o Queiroz? Não sei, mas parte da minha reflexão sobre este caso você encontra nesta postagem aqui.
As informações mencionadas até aqui nos ajudam a identificar algumas particularidades de movimento anticientífico no Brasil durante a pandemia de COVID19. Para uma análise mais, digamos assim, sociológica do problema é importante recordar o que, de fato, é o conhecimento científico.
O conhecimento científico é o irmão temporão – o mais novo – das outras três formas de conhecimento que influenciam nossa maneira de ver e se posicionar no mundo. Ele é precedido pelos:
i. conhecimentos populares, que interpretam o mundo pelo que as pessoas veem e pelo que sentem e, com base nessas sensações, atribuem sentido àquilo que vivenciam.
ii. conhecimentos teológicos, que são as diferentes doutrinas religiosas, cada uma com suas explicações sobre o mundo e os seres que nele vivem e, sobretudo, sobre a origem vida e como os seres humanos devem se comportar.
iii. conhecimentos filosóficos, que, diferente dos anteriores, depende exclusivamente da razão humana para analisar os fenômenos através de um processo de sistematização das ideias em sequências que contenham coerência lógica, mas que não necessitam ser empiricamente observáveis.
O conhecimento científico se difere de todos os anteriores desde o seu surgimento, entre o século XVI ao XVIII, até hoje. Na sua concepção clássica a “descoberta científica” depende da observação e sistematização dos fenômenos naturais e sociais, da análise desses registros, da construção de hipóteses explicativas, das tentativas de replicação dos fenômenos através de experimentos, do ajuste ou da criação de novas hipóteses e da divulgação destas hipóteses entre os membros da comunidade científica. Construir o conhecimento científico é um exercício constante da reflexão crítica sobre o senso comum, sobre crenças religiosas, através da observação de fatos e da sua análise racional. Não é de surpreender que a ciência cause desconforto para muitos.
Tanto as revoltas contra, quanto a aprovação social da ciência resultam da interconexão e da sobreposição de em dois grandes grupos de comportamentos. Este argumento é apresentado e detalhado por Robert K. Merton na conferência da Sociedade Americana de Sociologia em 1937 e é baseada na análise do caso da Alemanha a partir de 1933.
Primeiro, os métodos e os resultados científicos são incompatíveis com determinados valores humanitários, políticos, econômicos e religiosos defendidos pelos governantes. Ou seja, o conhecimento cientificamente construído pode colocar políticos e lideranças religiosas em posições desconfortáveis simplesmente por provar que seus valores eram fruto de interesses suspeitos ou de mera incompetência. Mas e daí, né!?
“Qual o problema se umas cinco ou sete mil pessoas morrerem, o importante é que a economia e o Brasil não podem parar”. Mesmo desconsiderando a muito provável subnotificação dos casos, esses números estão perto de triplicar. A Agência Brasil, da Empresa Brasil de Comunicação, publicou uma síntese de um estudo que diz:
“As estimativas de subnotificação de casos de covid-19 apontam que o Brasil pode ter até 16 vezes mais casos do que mostra a estatística oficial. Portanto, se no último balanço do Ministério da Saúde, divulgado na noite de ontem (17), o país registrava 241.080 pessoas com covid-19, o número real de infectados pelo novo coronavírus no Brasil pode chegar a 3,6 milhões.”
Mesmo esta informação sendo assustadora, é mais preocupante o fato de que equipes coletando dados sobre a evolução do COVID19 na população brasileira foram detidas (por órgãos de segurança pública), agredidas e em alguns casos tiveram seus dados e equipamentos destruídos em diversas cidades pelo país.
Quem será que se beneficia com a subnotificação? Quem quer manter o problema do COVID nos holofotes? Talvez o governo esteja tentando resolver o problema da previdência social e o do desemprego ao mesmo tempo. Afinal de contas, são vão morrer os idosos e aqueles que já possuíam uma condição de saúde comprometida. Aqueles com histórico de atleta iriam sentir uma leve gripezinha e logo estariam prontos para voltar ao trabalho. Não sem motivos, o médico diretor técnico do Hospital das Clínicas de São Paulo disse que está implícito nas falas do presidente uma lógica eugenista, o que remete a um dos períodos mais assombrosos e vergonhosos da história ocidental contemporânea.
Segundo, o conjunto de valores e comportamentos que fortalece a oposição à ciência é sustentado pela percepção de que a ética científica é oposta à ética das demais instituições sociais. Em geral, esses valores foram construídos ao longo de muitos anos e passaram a ser professados pela religião, reproduzidos pelas famílias, pelas escolas e pelas forças armadas.
Existem diversos casos que ilustram este conjunto de premissas: o eterno debate sobre o início a vida; a oposição à discussão de questões de sexualidade e gênero dentro das escolas; o caso da clonagem de animais e de seres humanos; os recorrentes movimentos antivacina; a constante associação entre cor da pele e propensão à criminalidade; o nem tão antigo debate sobre a humanidade dos povos indígenas e dos negros. Em resumo, a segunda fonte de descrédito do conhecimento científico é simplesmente o preconceito.
Mesmo depois de oitenta anos a reflexão de Merton continua sendo surpreendentemente atual. Fica evidente que o movimento anticientífico não possui fronteiras geográfica e tampouco se limita a algum momento específico da história. A comparação do passado com o período contemporâneo mostra que regimes políticos com inclinações totalitárias corrompem as instituições científicas e impedem o avanço do conhecimento, pois
“o impedimento do desenvolvimento científico é uma consequência das mudanças na estrutura política e no credo nacionalista. De acordo com o dogma da ‘Pureza Racial,’ praticamente todas as que não se adequavam ao critério politicamente imposto de ancestralidade Ariana e declarada simpatia ao regime Nazista foram eliminadas das Universidades e das instituições científicas” (Merton, 1938, p. 322-323)
Aqueles que tinham condições fugiram para outros países, onde possuíam um grau maior de liberdade para a realização das suas pesquisas e, obviamente, para a divulgação dos resultados destas pesquisas. Na sociologia existe um caso emblemático da Escola de Frankfurt, que transferiu todo o Instituto Para Pesquisa Social, localizado em Frankfurt, para Genebra e depois Nova Iorque. A fuga de cérebros fez com que a ciência alemã fosse severamente enfraquecida.
O Brasil sofreu muito com este fenômeno desde o período da ditadura industrial-militar (1964-1985), durante a qual diversos cientistas tiveram que abandonar seus postos e buscar asilo fora do país por conta dos seus posicionamentos políticos. Durante a redemocratização e o a primeira quinzena do século XXI o intercâmbio com instituições fora do país internacional era visto como atividade a ser incentivada por trazer benefícios. Não é preciso ser gênio para saber que a situação recente é bem outra.
O cenário atual é marcado por péssimas condições de trabalho e baixa empregabilidade, tanto na indústria quanto na academia. Pesquisadores altamente qualificados estão novamente buscando postos de trabalho no exterior. Imaginem agora o quanto o Brasil vai se prejudicar com a crescente redução dos recursos financeiros destinados ao sistema federal de educação superior e tecnológica. Diz a sabedoria popular que “quanto mais ignorante for um povo mais fácil ele será manipulado”. Pois é, bem que podiam ter escolhido um professor para liderar a nação.
Muito do ‘atraso’ tecnológico e socioeconômico que vivenciamos é fruto deste fenômeno. Uma nação com fraco desempenho científico tem poucas condições de desenvolvimento tecnológico próprio e está fadada a permanecer em uma situação marcada pela sub-industrialização, dependência na exportação de produtos agrícolas (soja e carne, por exemplo) e importação dos produtos intensivos em tecnologia (como computadores e celulares, atualmente itens essenciais).
Outra consequência desta situação é que trabalhadores com formação deficitária tendem a ser mal remunerados e, por isso, o custo real (tempo de trabalho necessário) para a aquisição destes bens é bem maior. Além do mais, as empresas que necessitam de mão de obra qualificada se instalam em países com um nível de educação mais elevado.
Em resumo, somos duplamente prejudicados. Pagamos mais caro por produtos industrializados e devido a economia amplamente baseada na agricultura de exportação nossa mão-de-obra é menos valorizada. A Alemanha Nazista ainda chegou ao absurdo de desacreditar todo o conhecimento científico produzido por não-arianos ou por aqueles que não demonstrassem publicamente sua simpatia pelo novo regime político. Aqueles que insistiam em adotar as teorias de não-arianos eram tratados como Judeus Brancos, eram perseguidos e podiam perder seus postos de trabalho.
Um exemplo icônico e também controverso, é o do físico Werner Heisenberg, ganhador do Nobel de Física em 1932, que se negou a abandonar a teoria da relatividade de Einstein, pois a considerava fundamental para o avanço das pesquisas em Física. Ele foi o líder do projeto de desenvolvimento da bomba atômica alemã durante a Segunda Guerra mundial. Posteriormente ele argumentou que, por sua oposição ao regime nazista, ele atuou de maneira a retardar ao máximo desenvolvimento da bomba.
Imaginem como seria viver num país onde aqueles que discordam do governo não tivessem liberdade para conduzir pesquisas científicas e tampouco para divulgar o conhecimento produzido. Que tipo de futuro teria uma nação controlada por este modelo de regime político?
A postura anticientífica foi, no entanto, seletiva e utilitarista. As políticas de alocação de recursos foram totalmente redirecionadas para que aquelas áreas úteis ao regime nazista e para que os objetivos do terceiro Reich fossem alcançados o mais rápido possível. Ao invés da reflexão intelectual foi priorizada a formação dos homens de ação, capazes de utilidade prática.
No Brasil contemporâneo são colocados como “prioritários os projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovações voltados para as áreas de Tecnologias:
I – Estratégicas; II – Habilitadoras; III – de Produção; IV – para Desenvolvimento Sustentável; e V – para Qualidade de Vida.
Mesmo aquelas áreas que aparentam apresentar maior utilidade prática aos interesses das indústrias ou do Estado demandam fundamentos teóricos consistentes que, no entanto, podem ficar limitadas às ciências exatas e naturais.
Neste contexto, é evidente que exista pouco um espaço limitado para as pesquisas nas ciências humanas, nas artes e na literatura. Basicamente, estas deveriam estar diretamente associadas às tecnologias estratégicas, habilitadoras, de produção, para o desenvolvimento sustentável e para a qualidade de vida.
Há um aspecto que poderia vir a ser positivo nesta proposta. Aumentariam as oportunidades de atuações multidisciplinares. Por exemplo, poderia haver um maior espaço para os Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia, cujo foco de análise consiste nas relações entre ciência, tecnologia e sociedade.
A inserção destas reflexões no processo inovativo desde as primeiras etapas de projeção, modelagem e desenvolvimento poderiam tornar o processo inovativo mais propenso ao sucesso, conforme argumento apresentado por Arie Rip em 1995.
Estratégias deste tipo poderiam contribuir para o desenvolvimento de tecnologias ambientalmente sustentáveis, economicamente justas e socialmente inclusivas. Mas isso depende do grau de liberdade e autonomia que o regime de governo dará aos pesquisadores, sejam eles das áreas das humanidades, artes e literatura, sejam eles das áreas tecnológicas.
Como sabemos os Estados totalitários demandam uma lealdade absoluta que, geralmente, é incompatível com a lealdade que os cientistas têm para com a ciência e o resultado das suas pesquisas. Seria pouco provável que tais articulações de fato viriam a ocorrer.
Ao fazer com que os cientistas aceitem o julgamento de líderes políticos cientificamente incompetentes sobre questões científicas os regimes totalitários se tornam grandes fontes de tensão, que inviabilizam a atividade científica e tecnológica como um todo.
Noutro texto, publicado em 1942, Merton afirma que cientistas possuem lealdade para com um conjunto de quatro imperativos institucionais, que constituem o seu código de ética implícito, incorporado através da prática e que consideram ser correto e bom. De maneira resumida, os cientistas guiam suas atividades pelas noções de Universalismo, Comunismo, Desinteresse e Ceticismo Organizado. Sendo que:
- O conhecimento produzido deve ser universal, sua validade não pode depender da etnia, da orientação política, religião, classe social, ou qualquer outros pré-requisitos que não sejam estritamente científicos.
- Como diz uma frase tradicionalmente atribuída à Descartes: “Se eu consegui enxergar mais longe é porque eu estava me apoiando sobre os ombros de gigantes.” Por isso, o conhecimento científico é considerado o resultado de um processo de construção comunal, geralmente financiado por recursos públicos e, por isso, deve ser disponibilizado à todos membros da sociedade de maneira igualitária, sem qualquer tipo de barreira.
- O interesse da pessoa produtora de conhecimentos científicos deve ser orientado para o reconhecimento da sua contribuição ao avanço do conhecimento sobre a sociedade ou a natura. Portanto, deve atuar de maneira desinteressada em questões de status social, ocupação de cargos políticos e de enriquecimento financeiro direto; e
- Deve ser cético em relação ao seu objeto de estudo e sistematicamente organizado na condução das suas pesquisas. Ou seja, constantemente contestar até mesmo o resultado de seus próprios esforços de produção do conhecimento.
Os acontecimentos recentes aqui, no país da terra plana, demonstram um fio condutor que não condiz com o código de ética das e dos cientistas, tampouco com as condições básicas para que o que conhecimento seja produzido livremente.
O condicionamento da produção de conhecimento aos projetos de desenvolvimento tecnológico mais se parece à promessas vazias, e de controle do seu conteúdo, do que reais intenções de promoção de um novo modo de produção da ciência e tecnologia, que seja voltado para a sustentabilidade ambiental e a justiça social.
Diversas declarações do Ministro do Meio Ambiente deixam claro que a sua compreensão de desenvolvimento sustentável não é compatível com a preservação da fauna e da flora nativas, com o respeito aos direitos dos povos indígenas. Sua relação com os seres vivos não humanos é estritamente antropocêntrica.
Talvez o governo esteja apenas tentando aprovar reformas e medidas que em situações de normalidade sofreriam oposição. Se para isso tenham que morrer alguns qual diferença faz?
Os posicionamentos da Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos são fortemente embasados na perspectiva de apenas uma das diversas formas de professar a fé Cristã, em específico é uma visão que não é nada condizente com os conhecimentos científicos sobre as áreas nas quais deveria atuar. Sua visão de sexualidade, gênero e família é incrivelmente anacrônica. Sua concepção de direitos humanos ignora os problemas enfrentados pelas pessoas vivendo em condição de encarceramento, nos subúrbios, nas favelas, soropositivas. Não menos indignante é a sua total negligência às necessidades dos povos indígenas e quilombolas.
Preciso ainda lembrar alguém da disputa do nosso presidente da República com Luiz Henrique Mandetta, quando esse era Ministro da saúde? Este tipo de conflito é consideravelmente diferente em regimes democráticos, que usam o conhecimento científico para orientar as tomadas de decisão em questões, por exemplo, de saúde pública.
Por fim, mas não menos importante, é a desastrosa atuação do Ministro da Educação, que está menos interessado em coordenar a aplicação do ENEM do que fazer esquetes, que qualquer estudante do ensino médio faria melhor. Está mais preocupado em reduzir o investimento público no Ensino Superior Público, em afirmar que Universidades Federais além de possuírem extensas plantações de maconha produzem metanfetamina nos seus laboratórios de química. A sua paixão da vez é mandar prender os juízes do Supremo Tribunal Federal.
É chocante a afirmação do Ministro de que só existe um povo, o povo Brasileiro, que falar em povos indígenas é abrir brechas para a oferta de privilégios. Ele certamente nunca leu Darcy Ribeiro, apesar de ser professor universitário e Ministro da educação. Amigo, o povo Brasileiro é indígena, nós – brancos – é que viemos, invadimos, massacramos, saqueamos e exploramos aqueles que aqui já estavam e aqueles que foram trazidos nos porões dos navios negreiros.
Para que a ciência se torne cada vez mais capaz de solucionar os problemas que nos afligem enquanto civilização é preciso que seja protegida da ingerência dos déspotas de plantão tanto quanto do conhecimento de senso comum.
É nítido que por aqui sofremos dos dois males identificados por Merton no início do regime Nazista na Alemanha. A ciência é desacreditada tanto por ser um empecilho ao projeto econômico e político de quem está no governo quanto por apresentar uma visão de mundo daquilo que tem sido reproduzido e normalizado preconceitos impregnados nas cabeças de muitos compatriotas. A carne negra continua sendo vista como a mais barata do mercado; as mulheres sofrem com o patriarcado nosso de cada dia; os moradores das periferias e das favelas são todos vagabundos; todos índios são preguiçosos; armar a população pra segurança pública é a solução.
Para isso, a comunidade científica precisa se fazer entender, precisa se comunicar com clareza, abandonar a pose e a prosa científica, precisa lembrar que ciência também se faz fora do laboratório. É urgente fazer com que o povo entenda que a ciência tem muito a contribuir para a solução de problemas concretos como alimentação saudável, habitação, transporte inteligente e sustentável, aumento da segurança e redução dos níveis de stress no trabalho, e a ampliação do uso de energias renováveis.
Sem que haja esta compreensão por todos os envolvidos na produção e divulgação da ciência permanecerá sendo nutrida a revolta contra a ciência, mesmo em regimes democráticos.
Produzir conhecimento cientifico por aqui é resistir, é se rastejar na lama, é se jogar nas trincheiras, é enfrentar jornadas exaustivas, trabalhar com recursos limitados e pesquisar mas não sem lecionar com salas lotadas, é acreditar que é possível fazer no presente que tenhamos futuro.
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